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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Cecília – A Experiência

Acadêmica Sandra Ferreira

Acadêmica do 4° semestre do Curso de Ciências Sociais - Licenciatura

UFFS - Campus Erechim

Breve diálogo entre o texto Democracia e autogestão de Nildo Viana, sociólogo e filósofo, e o filme La Cecília de Jean Louis Comoli.

O filme Cecília conta a saga de imigrantes italianos que vêem na experiência anarquista proposta por Giovanni Rossi a possibilidade de uma nova vida longe das dificuldades na Itália.

Diante da oferta de D. Pedro II, que via na proposta a chance de elevar a mão de obra barata sem maiores responsabilidades para o governo na colonização do Brasil, que então, já havia passado pelo processo de libertação dos escravos, Rossi pensou ter nas mãos, a chave para o sucesso de sua experiência: terras férteis, longe de interferências culturais e garantias de autonomia para seu intento.

Organizou um primeiro grupo de anarquistas dispostos a transpor o oceano e em terras brasileiras iniciou o que se chamaria Colônia Cecília, na cidade de Palmeira no Paraná, em 1890.

Em 1891, por dificuldades, tais como, o longo tempo entre plantio e a colheita do milho, a falta de maquinário e o aumento sem planejamento de moradores que então chegava à casa dos 250 habitantes na colônia, e consequentemente a escassez de alimentos, acontece a primeira derrota nos ideais da colônia, e o abandono do projeto por muitas famílias que foram em busca de trabalho em outras propriedades como alternativa de sobrevivência.

Em 1892, aproximadamente sessenta pessoas permaneciam em Cecília, mantendo o caráter anarquista da colônia. Nesse ano o trabalho comunitário girava em torno da uva, plantio, fabricação dos produtos derivados e barris, o que garantia o sustento da colônia.

Mas as transformações políticas pelas quais o país passou, esmagaram seus moradores, levando-os à miséria e ao fim da experiência em 1894.

Nildo Viana em seu artigo Democracia e autogestão, nos convida a refletir sobre a impossibilidade do sucesso da autogestão aplicada restritamente a relações sociais econômicas e políticas em um novo modelo de sociedade, mas necessariamente abrangendo todas as esferas da vida social.

“A autogestão é uma relação social fundante de uma nova formação social, uma nova sociedade” (Viana, 2007).

“A autogestão é uma relação de produção que se generaliza e se expande para todas as outras esferas da vida social.” (Viana, 2007).

Olhando para Cecília, a organização econômica da colônia, que conseguiu com o trabalho comunitário sustentar as necessidades dos seus moradores com casa, alimento e tudo o mais sem recorrer a ajuda de recursos externa à própria colônia, contemplou os princípios anarquistas da autogestão.

O mesmo aconteceu com relação à organização política, durante todo o tempo em que Cecília existiu enquanto comunidade anarquista, não houve verticalidade nas decisões. Todos gozavam, homens e mulheres dos mesmos direitos de decisão.

Então, onde está o problema? Não poderia ser também a questão das mudanças políticas no país que forçavam os imigrantes a comprar as terras que antes lhes tinham sido dadas pelo Imperador. Sem desprezar todo sacrifício feito,a ira pela injustiça sofrida, o prejuízo material e moral que isso acarretou pelo abuso das cobranças impostas, não seria motivo forte o bastante para sozinho, levar quatro anos de trabalho que fizeram a experiência ser considerada um sucesso, ao final, sem chances de ressurgir das cinzas, afinal não era esta a primeira vez que os anarquistas de Cecília passavam por privações extremas. Teria que ser algo mais poderoso e invisível ao primeiro olhar.

A razão está, creio, no “social”, na primeira célula da sociedade – a família!

Voltando ao início da colonização de Cecília, percebemos que seus primeiros moradores eram ali, livres, sem laços familiares, filhos, esposas, tudo isso tinha ficado para trás, na Itália. Eram pessoas integralmente livres, sem os constrangimentos e obrigações sociais que a família impõe a cada um dos seres humanos.

A moralidade, os preconceitos, as limitações sociais, a educação, os valores morais, sociais, religiosos, econômicos, políticos, de gênero, estão todos historicamente associados à ideia, à concepção de família.

O poder patriarcal, a submissão feminina, a propriedade sobre o corpo e os atos do outro, a própria visão do outro enquanto semelhante ou diferente; enquanto companheiro ou adversário; a desconfiança, a individualidade não como direito de cada um mas algo que se pode medir e pesar, valorar. Tudo o que se aprende desde o momento do nascimento e que se reproduz até a morte, vivendo em sociedade está garantido perpetuamente pela família, seja essa família pertencente a uma sociedade feudal, ou capitalista.

Todos esses conceitos de organização social foram trazidos junto com as famílias que vieram se juntar aos primeiros. A moral religiosa – mesmo que na colônia não houvesse a prática religiosa - , que reprime, limita o amor, a liberdade de escolha e de ação.

A vinda das famílias para a colônia modifica os hábitos dos primeiros moradores, impondo condições de conduta aos homens que têm poder sobre mulheres e junto com estas sobre as crianças. As mulheres por sua vez estão tão socialmente condicionadas à submissão que cobram esta atitude dos homens, não admitindo para si ou para eles nada além do que conhecem como as regras morais do casamento e da vida em sociedade.

Os princípios libertários são deixados a um plano unicamente econômico, prevalecendo no social a opressão e o poder, o julgamento do outro pelos padrões sociais em que foram educados.

Viana destaca ainda a impossibilidade de existência da autogestão numa democracia representativa: “A autogestão seria o conceito fundamental de uma sociedade futura e, portanto, incompatível com relações sociais, e, por conseguinte, conceitos, de nossa sociedade. Enfim, por tal motivo autogestão social é distinta e incompatível com democracia representativa.”

Podemos ainda refletir seguindo essa linha de pensamento que a figura do pai nada mais é senão o representante dos membros da família, que vem a ser uma micro sociedade comdemocracia representativa.

Kropotkin prova que todos os seres vivos independente de força e tamanho conseguem viver e sobreviver através da ajuda mútua na própria espécie. E é aí que está a chave, a meu ver, os animais lutam juntos pela sobrevivência porque não fazem distinção entre seus semelhantes, todos têm o mesmo valor no grupo, são iguais, o que não acontece entre os seres humanos que se organizam primariamente em famílias, e a partir disso somos iguais uns aos olhos dos outros, mas individualmente vemos que uns são mais iguais que outros.

A vida numa comunidade anarquista depende da harmonia cultural, dos valores sociais, do respeito à individualidade e à liberdade, da confiança mútua tanto quanto ou mais que da organização econômica e política igualitária, horizontalizada e sem leis ou repressão.


Referências:

VIANA, Nildo. Democracia e Autogestão. Achegas- Revista de Ciências Políticas, num 37, 2007.

PIOTR, Kropotkin. Ajuda mútua: um fator de evolução ; tradução Waldyr Azevedo Jr. — São Sebastião : A Senhora Editora, 2009.

COMOLI, Louis Jean. Filme La Cecília, Nef Diffusion, 1975.

2 comentários:

  1. O texto ressalta a história dos colonos italianos, que vieram para um país totalmente desconhecido por eles. Afim de promover uma sociedade baseada na autogetão economica e social. O que deve ser ressaltado nesse contexto é a coragem dessas pessoas, que apesar de enfrentarem arbitrariedade do governo brasileiro na época, mostram a todo o mundo que o sistema é possivel. Basta saber como conduzi-lo que é o grande desafio para o sucesso do governo autogestionário.

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  2. Conduz o texto perfeitamente, com idéias claras e com argumentos plausíveis, para compreensão da experiência ocorrida em Cecilia. Problematiza algumas questões que ocasionaram o rechaço entre familias, entre elas o patriarcalismo, moral religiosa, individualismo, dando enfase aos conceitos que constroem as familias, ou seja, todas as coerções sociais, preconceitos, rivalidades que fazem parte da mesma. Ressaltando que só é possível existir uma comunidade autogestionária, quando existir uma unidade entre todos os individuos, com direitos igualitários e interesses coletivos.
    Admiro sua forma de escrita, pois consegue transmitir todas as suas angústias e indignações!! Boa sorte!!

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