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terça-feira, 2 de julho de 2013

Labirinto de espelhos: sobre anarquismo e lutas sociais


Por Cassio Brancaleone e Daniel de Bem
Professores do Curso de Ciências Sociais da UFFS
Investigadores do Grupo de Pesquisa Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes (GPASE)



A recente onda de mobilizações e protestos que tomou as ruas (e as redes sociais), supostamente desde a primeira quinzena de junho (e é importante apontar a sutil diferença entre o “início” efetivo desse processo e o início de sua exposição midiática) tem sido responsável por desencadear um verdadeiro sentimento generalizado de atonia e perplexidade entre boa parte daquele segmento da sociedade que convencionamos chamar por intelectualidade. O que é compreensível, afinal, “fomos” pegos de surpresa, convencidos que estávamos sobre o processo, para alguns dito até civilizatório, de consolidação das instituições da democracia liberal representativa entre nós, especialmente com o fortalecimento dos partidos políticos como “instâncias cívicas” que monopolizam os mecanismos de alocação de candidatos para cargos públicos. A impressão é que muita coisa está fora do lugar. Mas a pergunta deveria ser: em algum momento, estiveram as coisas no seu lugar?

Por ocasião da publicação do artigo “Depredando o Espelho” (edição do dia 26/06/2013 do jornal Bom Dia), de autoria do prof. Ernesto Cassol, nos sentimos instigados a problematizar para o/as leitore/as algumas questões ali apresentadas, em nossa modesta opinião, de forma um tanto pedestre e até mesmo preconceituosa. Em especial, iremos tecer algumas considerações sobre o anarquismo e seu papel nessas e outras mobilizações ocorridas em nosso país.   

Lamentamos que venha de um professor de história um tratamento sobre o anarquismo tão desrespeitoso, uniformizador e caricato perante a sua importância histórica e atual no seio das lutas populares no Brasil e no mundo. O anarquismo, cabe recordar, significa justamente o oposto de desordem, bagunça e outros impropérios que secularmente foi a ele associado por figuras à direita e à esquerda do espectro político. Anarquismo é uma filosofia política e uma expressão histórica do movimento operário (logo, um movimento social e popular) que preconiza a ordem e a (auto)organização no sentido mais sofisticado e democrático que se possa conceber. Nesse sentido, é sim um inimigo da atual ordem vigente, qual seja, a estatal e capitalista. Por isso a pecha de desordeiros, da qual, nesse sentido, só pode ser motivo de orgulho (diria Chico Science: “desorganizando para organizar, organizando para desorganizar”). Mas o prof. Cassol, infelizmente, reifica e reproduz os mais nocivos e perniciosos preconceitos disseminados pela ortodoxia marxista (sim, porque outras correntes marxistas tiveram a audácia crítica de ir além da cartilha leninista ou do chauvinismo socialdemocrático).

É certo que existe sim, um anarquismo individualista, dito como “estilo de vida”, e que não deve ser confundido com o anarquismo organizado, como movimento social e político, tanto quanto existe um sem número de marxistas que estão espalhados por nossa sociedade sem nenhuma vinculação às massas populares, como intelectuais diletantes em bares, empresários, juízes e reitores de universidades.

Há mais de um século o movimento anarquista, no sentido mais plural do termo, vem construindo e promovendo teorias e práticas de solidariedade, cooperação, apoio mútuo, feminismo, internacionalismo, classismo, horizontalidade e autogestão, combatendo as diversas formas de discriminação, opressão e violência (religiosa, étnica, de gênero, política, econômica, epistemológica, etc) no mundo todo e no Brasil. O movimento anarquista foi a primeira expressão organizada do movimento operário de massas no Brasil. Os anarquistas fundaram os primeiro sindicatos e associações mutualistas de trabalhadores país. Até a criação do Partido Comunista do Brasil foi obra de anarquistas, inebriados com a realização da Revolução Russa (não foi o que disse Sérgio Buarque de Hollanda?). Colonos que vieram ocupar a região do Alto Uruguai, pasmem, eram anarquistas (recordemos a memória de Elias Iltchenco, agricultor e colono de Erebango). A quem interessa esquecer seletivamente a nossa história?

O anarquismo, como filosofia política e movimento social organizado, é anticapitalista e anti-estatal. No primeiro caso por considerar a relação patrão e empregado, ou seja, o assalariamento, uma relação de exploração e escravidão. No segundo caso por considerar a relação governo e governado, ou seja, a existência do Estado como um corpo político separado da sociedade, como uma relação de dominação e escravidão. Por isso preconiza a autogestão e o autogoverno: a auto-organização dos trabalhadores no local de trabalho e no território por eles habitados. Não há nada mais preconceituoso e estúpido, portanto, que associar anarquismo a desordem ou baderna. A anarquia pretende ser, justamente, o seu oposto, e isso só é possível eliminando todas as instituições e relações sociais que reproduzam e naturalizam o privilégio que nasce da exploração e a dominação do homem pelo homem.

O que incomoda muito a esquerda organizada em partidos eleitorais, ou seja, que acredita ou aceita acriticamente a representação liberal e pretende portanto dirigir os trabalhadores através da gestão do Estado, supostamente a interesse da própria classe trabalhadora, é que os anarquistas defendem exatamente o oposto: organizar a classe trabalhadora, os desempregados, os camponeses, enfim, todos os oprimidos para que eles próprios sejam os responsáveis por sua emancipação, por sua libertação, e não uma vanguarda ou seus dirigentes. Mais, que esse processo tem que se dar de baixo para cima, e não de cima para baixo.

Por isso os anarquistas desconfiam de todos os representantes, e da lógica de todos os partidos eleitorais que apenas querem disputar o poder. Mas desconfiar da representação e negar o Estado não significa negar a existencia de pessoas que acreditam nos partidos e do papel do próprio Estado como instituição existente e que, na medida em que os trabalhadores foram capazes de pressioná-lo, garantiu a preservação de alguns direitos que são valiosíssimos para os trabalhadores. Os anarquistas são apartidários sim, mas em momento algum defenderam e aplicaram a violencia contra aqueles militantes, marxistas ou não, que se organizam nos partidos. Se há algo importante de destacar do espírito anárquico, entre outras coisas, é justamente a defesa de uma ação política anti-sectária. Os anarquistas compreenderam historicamente que, para alcançar seus objetivos, a liberdade com autonomia, igualdade, fraternidade, não podem reproduzir ações que endossem a intolerância e o obscurantismo político.

É incrível o desconhecimento (ou novamente, o preconceito) que o professor Cassol demonstra sobre o história da Guerra Civil espanhola. Mesmo intelectuais alinhados com marxismo reconhecem o papel importante jogado pelos anarquistas no processo de mobilização da luta contra o franquismo (George Orwell, por exemplo!). Nos fronts de batalha, estavam nas trincheiras, lado a lado com brigadistas internacionais das mais distintas matrizes políticas da esquerda. E foram o estalinismo do Partido Comunista Espanhol e a política de boicote seletivo da URSS os principais responsáveis pela vitória fascista na Espanha em 1939. Tal visão está à altura da ignorancia ou má fé disseminada pela governador gaúcho Tarso Genro (outro intelectual marxista), que em entrevista recente associou os atos de depretação e vandalismo ocorridos em Porto Alegre aos “anarquistas”, que supostamente comporiam o mesmo bloco de agitadores formado por fascistas, nacionalistas e gente infiltrada pela direita (certamente pela própria polícia)!

Na semana passada a sede da Federação Anarquista Gaúcha (FAG) foi invadida pela polícia federal. Os policiais entraram no espaço dessa entidade à paisana, armados e sem mandato judicial! É esse o Brasil dos direitos políticos e civis que construímos pós-ditadura? Atualmente existem no Brasil um número significativo de organizações e coletivos anarquistas. Terão eles o mesmo destino? Irão mandar prender daqui em diante as pessoas por porte de livro anarquista, depois do porte de vinagre nas manifestações? Depois dizem que os anarquistas e a extrema esquerda fazem o “jogo que a direita gosta”.... ora, o que vemos é exatamente o oposto: a esquerda eleitoral, partidária e hegemônica é quem faz o jogo que a direita gosta, não só se aliando e compondo secretarias e ministérios com ela, mas mandando prender e calar as vozes mais combativas e consequentes da sociedade civil e da classe trabalhadora.

Para finalizar: é certo que as mobilizações que desabrocharam no país recentemente não são fruto da ação da militância anarquista. Aliás, não são fruto da ação de nenhuma força política isolada. É justamente a coalização e cooperação, direta e indireta, voluntária e involuntária, de uma infinidade de militantes anônimos, anarquistas, marxistas, e especialmente gente que não tem nada a ver com uma coisa ou outra, mas certamente gente que não tem nada a ver também com a esquerda hegemônica e eleitoral, que tornou possível a “primavera brasileira”. Por isso a perplexidade da esquerda eleitoral hegemônica. Esse parece ser um fenômeno das lutas urbanas de médio e longo prazo, em especial das grandes cidades, que liberou energias represadas de setores sociais mesclados entre um “novo proletariado” e uma “ascendente classe média” e que apenas está começando a mostrar sinais do que pode representar e fazer para mudar esse país. Novas sociabilidades e outras compreensões sobre o que significa a relação governo e sociedade estão por emergir disso tudo. Por isso o anarquismo, como filosofia e prática política historicamente marginalizada, possui tanta afinidade com o que está aí e é muitas vezes evocado nos vários lados da “trincheira”.