Por Cassio Brancaleone e
Daniel de Bem
Professores
do Curso de Ciências Sociais da UFFS
Investigadores
do Grupo de Pesquisa Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes (GPASE)
A recente onda de mobilizações e
protestos que tomou as ruas (e as redes sociais), supostamente desde a primeira
quinzena de junho (e é importante apontar a sutil diferença entre o “início”
efetivo desse processo e o início de sua exposição midiática) tem sido
responsável por desencadear um verdadeiro sentimento generalizado de atonia e
perplexidade entre boa parte daquele segmento da sociedade que convencionamos
chamar por intelectualidade. O que é compreensível, afinal, “fomos” pegos de
surpresa, convencidos que estávamos sobre o processo, para alguns dito até
civilizatório, de consolidação das instituições da democracia liberal
representativa entre nós, especialmente com o fortalecimento dos partidos
políticos como “instâncias cívicas” que monopolizam os mecanismos de alocação
de candidatos para cargos públicos. A impressão é que muita coisa está fora do
lugar. Mas a pergunta deveria ser: em algum momento, estiveram as coisas no seu
lugar?
Por ocasião da publicação do artigo “Depredando
o Espelho” (edição do dia 26/06/2013 do jornal Bom Dia), de autoria do prof.
Ernesto Cassol, nos sentimos instigados a problematizar para o/as leitore/as
algumas questões ali apresentadas, em nossa modesta opinião, de forma um tanto
pedestre e até mesmo preconceituosa. Em especial, iremos tecer algumas
considerações sobre o anarquismo e seu papel nessas e outras mobilizações ocorridas
em nosso país.
Lamentamos que venha de um professor
de história um tratamento sobre o anarquismo tão desrespeitoso, uniformizador e
caricato perante a sua importância histórica e atual no seio das lutas
populares no Brasil e no mundo. O anarquismo, cabe recordar, significa
justamente o oposto de desordem, bagunça e outros impropérios que secularmente
foi a ele associado por figuras à direita e à esquerda do espectro político.
Anarquismo é uma filosofia política e uma expressão histórica do movimento
operário (logo, um movimento social e popular) que preconiza a ordem e a (auto)organização
no sentido mais sofisticado e democrático que se possa conceber. Nesse sentido,
é sim um inimigo da atual ordem vigente, qual seja, a estatal e capitalista.
Por isso a pecha de desordeiros, da qual, nesse sentido, só pode ser motivo de
orgulho (diria Chico Science: “desorganizando para organizar, organizando para
desorganizar”). Mas o prof. Cassol, infelizmente, reifica e reproduz os mais nocivos
e perniciosos preconceitos disseminados pela ortodoxia marxista (sim, porque
outras correntes marxistas tiveram a audácia crítica de ir além da cartilha
leninista ou do chauvinismo socialdemocrático).
É certo que existe sim, um anarquismo
individualista, dito como “estilo de vida”, e que não deve ser confundido com o
anarquismo organizado, como movimento social e político, tanto quanto existe um
sem número de marxistas que estão espalhados por nossa sociedade sem nenhuma
vinculação às massas populares, como intelectuais diletantes em bares,
empresários, juízes e reitores de universidades.
Há mais de um século o movimento
anarquista, no sentido mais plural do termo, vem construindo e promovendo
teorias e práticas de solidariedade, cooperação, apoio mútuo, feminismo,
internacionalismo, classismo, horizontalidade e autogestão, combatendo as
diversas formas de discriminação, opressão e violência (religiosa, étnica, de
gênero, política, econômica, epistemológica, etc) no mundo todo e no Brasil. O
movimento anarquista foi a primeira expressão organizada do movimento operário de
massas no Brasil. Os anarquistas fundaram os primeiro sindicatos e associações
mutualistas de trabalhadores país. Até a criação do Partido Comunista do Brasil
foi obra de anarquistas, inebriados com a realização da Revolução Russa (não
foi o que disse Sérgio Buarque de Hollanda?). Colonos que vieram ocupar a
região do Alto Uruguai, pasmem, eram anarquistas (recordemos a memória de Elias
Iltchenco, agricultor e colono de Erebango). A quem interessa esquecer
seletivamente a nossa história?
O anarquismo, como filosofia política
e movimento social organizado, é anticapitalista e anti-estatal. No primeiro
caso por considerar a relação patrão e empregado, ou seja, o assalariamento, uma relação de
exploração e escravidão. No segundo caso por considerar a relação governo e
governado, ou seja, a existência do Estado como um corpo político separado da sociedade, como uma relação
de dominação e escravidão. Por isso preconiza a autogestão e o autogoverno: a
auto-organização dos trabalhadores no local de trabalho e no território por
eles habitados. Não há nada mais preconceituoso e estúpido, portanto, que
associar anarquismo a desordem ou baderna. A anarquia pretende ser, justamente,
o seu oposto, e isso só é possível eliminando todas as instituições e relações
sociais que reproduzam e naturalizam o privilégio que nasce da exploração e a
dominação do homem pelo homem.
O que incomoda muito a esquerda
organizada em partidos eleitorais, ou seja, que acredita ou aceita acriticamente
a representação liberal e pretende portanto dirigir os trabalhadores através da
gestão do Estado, supostamente a interesse da própria classe trabalhadora, é
que os anarquistas defendem exatamente o oposto: organizar a classe
trabalhadora, os desempregados, os camponeses, enfim, todos os oprimidos para
que eles próprios sejam os responsáveis por sua emancipação, por sua
libertação, e não uma vanguarda ou seus dirigentes. Mais, que esse processo tem
que se dar de baixo para cima, e não
de cima para baixo.
Por isso os anarquistas desconfiam de
todos os representantes, e da lógica de todos os partidos eleitorais que apenas
querem disputar o poder. Mas desconfiar da representação e negar o Estado não
significa negar a existencia de pessoas que acreditam nos partidos e do papel
do próprio Estado como instituição existente e que, na medida em que os
trabalhadores foram capazes de pressioná-lo, garantiu a preservação de alguns
direitos que são valiosíssimos para os trabalhadores. Os anarquistas são
apartidários sim, mas em momento algum defenderam e aplicaram a violencia
contra aqueles militantes, marxistas ou não, que se organizam nos partidos. Se
há algo importante de destacar do espírito anárquico, entre outras coisas, é
justamente a defesa de uma ação política anti-sectária. Os anarquistas
compreenderam historicamente que, para alcançar seus objetivos, a liberdade com
autonomia, igualdade, fraternidade, não podem reproduzir ações que endossem a
intolerância e o obscurantismo político.
É incrível o desconhecimento (ou
novamente, o preconceito) que o professor Cassol demonstra sobre o história da
Guerra Civil espanhola. Mesmo intelectuais alinhados com marxismo reconhecem o
papel importante jogado pelos anarquistas no processo de mobilização da luta
contra o franquismo (George Orwell, por exemplo!). Nos fronts de batalha,
estavam nas trincheiras, lado a lado com brigadistas internacionais das mais
distintas matrizes políticas da esquerda. E foram o estalinismo do Partido Comunista
Espanhol e a política de boicote seletivo da URSS os principais responsáveis
pela vitória fascista na Espanha em 1939. Tal visão está à altura da ignorancia
ou má fé disseminada pela governador gaúcho Tarso Genro (outro intelectual
marxista), que em entrevista recente associou os atos de depretação e
vandalismo ocorridos em Porto Alegre aos “anarquistas”, que supostamente
comporiam o mesmo bloco de agitadores formado por fascistas, nacionalistas e
gente infiltrada pela direita (certamente pela própria polícia)!
Na semana passada a sede da Federação
Anarquista Gaúcha (FAG) foi invadida pela polícia federal. Os policiais
entraram no espaço dessa entidade à paisana, armados e sem mandato judicial! É
esse o Brasil dos direitos políticos e civis que construímos pós-ditadura?
Atualmente existem no Brasil um número significativo de organizações e
coletivos anarquistas. Terão eles o mesmo destino? Irão mandar prender daqui em
diante as pessoas por porte de livro anarquista, depois do porte de vinagre nas
manifestações? Depois dizem que os anarquistas e a extrema esquerda fazem o “jogo
que a direita gosta”.... ora, o que vemos é exatamente o oposto: a esquerda
eleitoral, partidária e hegemônica é quem faz o jogo que a direita gosta, não
só se aliando e compondo secretarias e ministérios com ela, mas mandando
prender e calar as vozes mais combativas e consequentes da sociedade civil e da
classe trabalhadora.
Para finalizar: é certo que as mobilizações que desabrocharam no país recentemente não são fruto da ação da militância anarquista. Aliás, não são fruto da ação de nenhuma força política isolada. É justamente a coalização e cooperação, direta e indireta, voluntária e involuntária, de uma infinidade de militantes anônimos, anarquistas, marxistas, e especialmente gente que não tem nada a ver com uma coisa ou outra, mas certamente gente que não tem nada a ver também com a esquerda hegemônica e eleitoral, que tornou possível a “primavera brasileira”. Por isso a perplexidade da esquerda eleitoral hegemônica. Esse parece ser um fenômeno das lutas urbanas de médio e longo prazo, em especial das grandes cidades, que liberou energias represadas de setores sociais mesclados entre um “novo proletariado” e uma “ascendente classe média” e que apenas está começando a mostrar sinais do que pode representar e fazer para mudar esse país. Novas sociabilidades e outras compreensões sobre o que significa a relação governo e sociedade estão por emergir disso tudo. Por isso o anarquismo, como filosofia e prática política historicamente marginalizada, possui tanta afinidade com o que está aí e é muitas vezes evocado nos vários lados da “trincheira”.