Páginas

terça-feira, 29 de novembro de 2011

A autogestão em ‘Terra e Liberdade’, de Ken Loach


Clarissa Deggeroni
Acadêmica do 4º semestre do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais
UFFS - Campus de Erechim

O filme Terra e Liberdade (1995), de Ken Loach, conta a história de um operário inglês, David Carr, que se alista voluntariamente nas milícias pró-República da Guerra Civil Espanhola de 1936. Através do partido comunista, do qual é membro, David fica sabendo do massacre aos integrantes das esquerdas espanholas, e, primeiramente motivado por ideias românticas, viaja voluntariamente à Espanha, juntamente com comunistas e anarquistas de várias nacionalidades, para alistar-se nas milícias que lutam contra a tentativa de golpe do general Franco.
Na narrativa, a estrutura das milícias é, conceitualmente, participativa, tanto em relação ao fato das decisões serem tomadas na coletividade quanto, num momento inicial, no aspecto de gênero, pois admitia a participação das mulheres na guerrilha. Porém, não deixava de ser um poder militar, que lidava com as condições adversas que já estavam dadas (tanto nas questões internas de escassez quanto nas questões de política internacional e do apoio dos países ao lado republicano ou ao lado franquista), por isso precisava, pela contingência da situação, ser opressivo (realizar execuções rápidas, por a vida de civis em perigo, etc). Mesmo diante disso pode-se perceber um claro contraste da estrutura das milícias com as Brigadas Populares (de orientação stalinista), as quais tinham como aspecto central a hierarquia e a obediência (relações de poder). As experiências libertárias preveem a extinção do exército permanente: “Tal como fizeram os proletários durante a Comuna, deve-se abolir o exército permanente e a burocracia do estado” (Viana, p. 68).
Outro elemento importante do filme se dá após a conquista do vilarejo ocupado pelas tropas franquistas (‘os fascistas’). Trata-se da discussão que os personagens fazem sobre a coletivização das terras locais. O processo se dá através de uma assembleia na qual são expostos os argumentos dos presentes. De um lado, houve a defesa da propriedade individual através do argumento sobre a justiça de colher os frutos do próprio trabalho, do outro, houve a defesa da coletivização das terras em virtude da falta de alimentos, e também porque seria uma experiência para colocar a ideologia da revolução na prática. Venceu a proposta da coletivização das terras e a distribuição dos alimentos para todos.
Para entender a lógica da coletivização, tem que se analisar as mudanças em relação ao controle dos meios de produção e às relações de produção. Com a abolição da propriedade privada, o objetivo era a produção coletiva na terra, o que aumentaria a produtividade no período de guerra e poderia alimentar a todos segundo suas necessidades. Pode-se dizer que isso tem como decorrência não somente um controle da produção - ou seja, “‘supervisionar’, ‘inspecionar’ ou verificar as decisões tomadas por ‘instâncias exteriores’ ao processo produtivo” (Viana, p. 64).
No contexto apresentado no filme, a proposta abrangia novas relações de produção, que eliminariam a mais-valia (não há necessidade de lucro dos donos dos meios de produção já que todos possuem os meios de produção) e há predominância do trabalho vivo sobre o trabalho morto (a maior parte dos frutos do trabalho retornar ao trabalhador). A essas práticas denominamos autogestão.  A autogestão é uma relação de produção que se generaliza e se expande para todas as outras esferas da vida social. [...] A autogestão significa que os próprios ‘produtores associados’ dirigem sua atividade e o produto dela derivado” (Viana, p. 67). Essa mudança era considerava tão brusca, que durante a narrativa foi posto em questão o medo que tal mudança causava nos países capitalistas e até na União Soviética, por seus interesses em negociar com os países ocidentais.
A construção de outro modelo de sociedade, imaginada pelos espanhóis e retratada no filme, é impossibilitada pelas disputas políticas entre os diferentes partidos que inicialmente haviam se unido em torno do inimigo fascista em comum, em especial ao considerável poder militar russo no contexto da época. A visão estatizante e imperialista do stalinismo (que defendia, pelo menos teoricamente, uma forma de controle operário, com demandas econômicas ditadas pelo partido), contrastava com a ideia das práticas de autogestão, que necessitavam de uma mudança de mentalidade, tanto nas relações de produção quanto nos conceitos políticos, em relação à presença de hierarquias e relações de poder. Com a continuação da mudança local, como diria David, os milicianos poderiam ter ‘mudado o mundo’, porém precisavam mudar as velhas mentalidades travestidas de ideais democráticos e populares, como o stalinismo.

Referências

1 – VIANA, Nildo. Democracia e Autogestão. S.d. Disponível em: <www.achegas.net/numero/37/nildo_37.pdf>
2 – Terra e Liberdade (Land and Freedom, 1995). Diretor: Ken Loach. 109min.

2 comentários:

  1. Interessante o viés que a colega Clarissa deu em relação "a participação das mulheres na guerrilha". Admito que percebi, mas não abordei tal assunto. Observei no filme que além da participação, elas confrontavam os homens e o sistema com excelentes argumentos. Outra passagem que gostaria de comentar foi o debate sobre a coletivização das terras e alimentos, sendo um principio adotado pela autogestão (o coletivizar), somente assim, pode-se encaminhar para uma nova sociedade.

    ResponderExcluir
  2. Gostei muito do texto, Clarissa! Umas das partes que eu considerei mais interessante em seu texto foi a questão de que a própria União Soviética tinha medo de uma mudança tão brusca, pois traria consigo o fim do Estado. Outra parte legal é quando você cita o Nildo Viana:"A autogestão é uma relação de produção que se generaliza e se expande para todas as outras esferas da vida social". Isso demonstra bem que a autogestão tem um grande potencial revolucionário.

    ResponderExcluir